O ano era 2012 e Tiago Barbosa, um jovem negro da periferia do Rio de Janeiro, tentava alcançar o sucesso no reality musical “Ídolos”, da RecordTV. Durante a competição, ele já fazia audições para viver Simba, protagonista da mais lucrativa adaptação da Disney para a Broadway. A audição de “O Rei Leão” durou meses, mas Tiago já tinha conquistado a diretora americana Julie Taymor, que chorou ao ver o teste do brasileiro. “Ninguém jamais fez como ele fez. Nunca. Em nenhum lugar”, declarou ela à ABC. Ao conquistar o protagonista do espetáculo, o ator precisou deixar o Morro do Vidigal e se mudar para São Paulo, onde o musical ficou em cartaz em 2013 e 2014. “Cheguei ao top 7 do "Ídolos", mas eu já estava conversando com a produção porque eu descobri que seria o Simba e não poderia mais seguir no programa. Precisava mudar minha vida e mudar para São Paulo. Além disso, precisava de uma preparação física para ganhar massa muscular”, contou o ator em entrevista à Jovem Pan.
Protagonizar “O Rei Leão” aos 27 anos mudou a vida de Tiago. Na época, o artista já era pedagogo de formação, estava fazendo pós-graduação em gestão empresarial e tinha acabado de iniciar uma segunda faculdade, de fonoaudiologia. “Descobrir que seria o Simba foi um resgate da minha autoestima, do meu valor, eu me senti um homem de respeito. Foi a primeira vez que morei sozinho, sem precisar compartilhar a casa com ninguém, foi a primeira vez que fiz um trabalho reconhecido mundialmente. Foi um tempo de muita mudança, até na relação com meus pais, que estava abalada. Através de "O Rei Leão", eu pude mudar a vida dos meus pais e estudar mais porque passei a ter outro acesso à cultura”, falou o ator, que teve seu primeiro contato com a arte através do grupo de teatro “Nós do Morro”.
Depois de fazer sucesso como Simba e atrair olhares internacionais, Tiago participou de outras duas grandes produções no Brasil: “Mudança de Hábito” e “Cinderella, o Musical”. Na segunda, ele fez história ao ser o primeiro ator negro do mundo a viver o Príncipe Topher na produção Broadway. “Quando eu comecei a fazer os testes para ser o príncipe, eu estava destruído, procurando oportunidades e vendo que o teatro musical era um lugar para poucos. No processo de audição, a produção viu em mim a chance de fazer a diferença dentro da história do espetáculo. Foi legal, mas foi um processo de luta porque veio o questionamento: será que a sociedade está pronta para ver um príncipe negro dentro de uma obra teatral conhecida?”, declarou o ator, que sente que os atores negros ainda possuem muita dificuldade de ocupar papéis de protagonismo. “É hora de fazer a inclusão. Será que quando eu tiver uma filha, eu vou ter que falar para não ser atriz porque será muito difícil ela ser uma princesa ou protagonista por ser negra? Até quando vamos manter um padrão que fere pessoas, que descapacita e subestima sonhos?”, indagou.
“O Rei Leão” volta a cruzar a história de Tiago logo após “Cinderella”, isso porque foi para viver Simba que ele deixou o Brasil para viver na Espanha. “Não esperava o convite. Recebi um e-mail do representante da Disney e caiu no spam, a sorte é que eu tinha a mania de olhar a lixeira e vi a proposta para fazer um teste de adaptação de linguagem para ver se eu conseguiria interpretar em espanhol. Muita gente pensa que já saí do Brasil e já me tornei protagonista aqui, mas não foi bem assim. Fiz o teste, passei, porém era a quarta opção de Simba por ser estrangeiro. Chegando aqui, eu estudei muito porque tive aula de fonética só para aprender a fazer o musical, mas precisava me virar fora dos palcos, então entrei em uma escola para conseguir me comunicar no dia a dia, contou Tiago, que integrou o elenco de “El Rey León” por cinco anos na Espanha.
Somando as montagens brasileira e espanhola, o ator passou sete anos na pele do filho de Mufasa e, pouco antes da pandemia, decidiu que era hora de encerrar esse ciclo. Tiago foi convidado para fazer teste para um vilão de um musical sobre a cantora Tina Turner. No entanto, a Covid-19 afetou em cheio a classe artística e, com os teatros fechados, o projeto declinou. “Decidi focar na minha vida pessoal nesse período, mas já tinha na minha cabeça que era hora de parar com "O Rei Leão", foram muitos anos fazendo o espetáculo, precisava conhecer outras realidades. Nesse período, participei de um reality musical, foi minha primeira aparição na TV espanhola e logo veio o convite para viver a Lola, em "Kinky Boots". Eu disse "sim" porque era um desafio que necessitava na minha carreira.”
“Kinky Boots” é um premiado musical da Broadway que conta a história de Charlie Price, que ao ver a fábrica de sapatos que herdou do pai à beira da falência, acaba fazendo uma inusitada parceria com Lola, uma drag queen, que o ajuda a desenvolver uma linha de botas de salto alto. “Quando comecei a ler o texto, senti que a Lola não é uma drag queen. Tem uma parte que ela diz que se sente agredida quando tem que colocar roupas masculinas porque ela não se vê como um homem. Uma drag queen não diria isso, pois elas se caracterizam para um movimento artístico, já uma mulher trans se sente agredida quando a sociedade tenta impor, por exemplo, que ela tem que se vestir como um "homem" para trabalhar”, pontuou o ator. “Comecei a estudar esse universo trans, pedi licença aos americanos, que são donos do texto, e aos diretores espanhóis, para mostrar em cena uma mulher trans e não uma drag queen. Eles entenderam e foi muito legal esse processo. Conversei com muitas pessoas trans, pedi à produção muitas aulas de modos femininos, de fonética e para aprender a andar de salto alto. Também decidi perder peso porque estava muito musculoso. Quis tornar a personagem mais feminina e não fazer algo caricato.”
Entre as audições de “O Rei Leão” e o atual papel em “Kinky Boots”, passaram-se 10 anos. Tiago recentemente conseguiu a cidadania espanhola e não pretende voltar a morar no Brasil. Ele contou que sempre viveu na Europa legalmente e demorou para pedir a dupla cidadania porque achou que não conseguiria o documento. “É aquele velho complexo de vira-lata, de achar que sempre haverá um problema, mas contratei uma advogada e, na verdade, foi tranquilo.” Olhando para trás, o ator, atualmente com 37 anos, sente que sua história pode servir de inspiração.
“Sempre fui um cara muito sonhador e lutei muito para conseguir realizar meus objetivos. Já abdiquei de muita coisa. Passei três anos, por exemplo, sem ver meu sobrinho, que mora no Brasil. Tive que entender o meu propósito e, sem a família por perto, muitas vezes senti vontade de desistir, mas engolia o choro sozinho e seguia tentando porque sabia que atrás de mim vem uma nova geração de atores negros e periféricos que sonham em conquistar o mundo. Tenho certeza que se eu consegui, outros também vão e sei do meu papel social nessa história”, concluiu o artista, que, mesmo morando longe, ainda sonha em encabeçar um grande projeto em solo brasileiro.